Crónica de Alexandre Honrado
Negacionismo essa forma de nos limitar a liberdade
Foi uma referência feita por Alexandra Prado Coelho, anunciando que dará a conhecer, no Fugas do Jornal Público, uma história – espero-a com a ânsia que move sempre os curiosos viciados em coisas boas – sobre Salma Al Farouki, que recordei Roger Garaudy. Salma Al Taji Al Farouki é a viúva do filósofo francês, com o qual protagonizou um caminho ativo, por exemplo, para difundir a cultura do al Adalus, sobretudo como marca essencial da paisagem humana de Córdoba.
Resistente antinazi, dissidente comunista e, ultimamente antissionista e propagandista muçulmano, Roger Garaudy morreu em Paris, com 98 anos, em junho de 2012. Conheci-o quando li Diálogo das Civilizações (o Ocidente é um acidente), se é que se pode conhecer alguém apenas ao ser seu leitor, episódico apesar de atento, mesmo fazendo, como fiz, seguir a esta, de outras leituras.
A ousadia de Garaudy, digo eu, era o seu desalinhamento, a sua descompostura perante formatos de pensamento tidos por intocáveis. Por essas caminhadas reflexivas fez um caminho de saltos e sobressaltos. Foi expulso do Partido Comunista Francês, porque, antes de tantos outros, discordou dos rumos do marxismo dessa época (anos 1970). Descobre (como Jean-Paul Sartre, do qual, aliás, discordará) o filão atraente do Existencialismo e rende-se ao que nele existe de preocupação humanista. E tem como outra discutível ousadia tornar-se o arauto de uma solução aparentemente impossível de alcançar: a resolução dos problemas de uma subjetividade que cresceu além da conta nos tempos modernos, questão que, segundo lhe parece, outros existencialistas não haviam ainda resolvido.
Parece-me evidente que Garaudy tocou numa das feridas mais intensas que hoje nos levam a estados terminais e comatosos. Sofremos de subjetividade, somos farrapos humanos nesta iniciada terceira década do século XXI, um século de ultraviolência e desorientação, onde somamos incerteza e insegurança, medo e ignorância e retrocedemos culturalmente a séculos obscuros da superação humana, como se o passado não tivesse existido e a memória fosse um apetrecho arquivado.
Depois de tudo, há um Garaudy que eu não entendo nas suas opções extremadas. O Gauraudy que correu pelo beco sem saída de algumas ideias surpreendentes. Não tanto a surpresa de vê-lo abandonar o marxismo pelo existencialismo e acabar convertido ao islamismo, mas à produção de ideias para muitos obscenas, equilibrando-se nos antípodas da sua própria formação e crescimento intelectual, como quando é o porta-voz do negacionismo do Holocausto, alegando que a morte de seis milhões de judeus era um “mito”, o que, aliás o levou a tribunal e a ser condenado pela lei francesa. Vindo de um homem que foi da Resistência francesa e que produziu uma leitura do mundo sagaz e incisiva, esta contradição é uma formulação de espantos, uma desilusão.
Numa época de negacionistas, que procuram passar um pano molhado na ardósia de uma história de horrores ou que desfilam em parada dizendo que o coronavírus é uma ficção, só para dar dois exemplos, recordar Garaudy torna-se-me fundamental. É que não quero herdar coisas tão aberrantes; desejo ficar fora da caixa onde me propõem essas grilhetas e outras tantas amarras.
Alexandre Honrado
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